Caminhada até Aparecida: Roteiro de turismo rural e manifestação de fé!
“Bom para o corpo, a mente e principalmente para a alma”. É desta forma que é vista a caminhada até Aparecida do Norte, marcada por expectativas sobre o tempo, os mantimentos, os prazos, os horários e as belezas naturais e experiências de fé. Nos preparativos os contatos se afunilam e as responsabilidades se traduzem em ações e compromissos cumpridos.
O por do sol e o amanhecer sempre se fazem espetáculos a parte. O fogão de lenha lembra as origens dos participantes. Embora cansados, as conversas são mais produtivas, começa aí a fase de reflexões sobre a importância real da vida e da fé. As horas passam mais rápido para os que ainda não aprenderam a contemplar a natureza e a importância do sacrifício para esta tarefa. Religiosidade a parte, são várias imagens e experiências vividas.
No caminho existem alojamentos próprios a esta prática e no trajeto, a imagem de Nossa Senhora é revezada entre os participantes. É fácil perceber os caminhos alterados por conta da força da natureza, o tipo de fauna e flora, as obras humanas para manter o trajeto, a mescla de mata nativa e campo aberto, as subidas e descidas sempre guardam algum mistério. O melhor da caminhada são as visitas às várias capelas, muitas delas recheadas por uma recepção calorosa de seus proprietários, características típicas do homem rural.
São várias paisagens inspiradoras, várias fazendas, travessias diferentes e emocionantes, já que cada ano algo muda e torna-se uma surpresa agradável transpô-la. O objetivo é exatamente vencer obstáculos, sejam os naturais ou os da vida. A caminhada serve como preparação de uma resistência íntima com a divindade e a desculpa é o esforço físico e mental para a tarefa proposta. Uma imagem espetacular é a de uma cachoeira, no distrito de Lagoinha, que no meio do trajeto se destaca das outras paisagens.
A chegada ao morro que antecede a chegada a basílica é realizada com uma oração de agradecimento. Neste momento as bolhas dos pés e o cansaço são trocados por emoções fortes, sejam pela fé ou pela finalização de um objetivo humano. “No topo que avista a basílica a emoção toma conta de todos, uns chegam até a chorar, é uma experiência fora do comum!”, comenta Wagner José dos Santos, veterano destas caminhadas.
Existem duas saídas do centro de Ubatuba, uma no inverno, com a turma do Itaguá, e outra em novembro, da Igreja Matriz, que tem um maior número de participantes. As duas saídas são planejadas com antecedência e rodeadas de cuidados. O grupo normalmente volta de van ou de ônibus, carros de apoio levam o material excedente e os de emergência. Uma viatura da polícia e ambulância também acompanham o trajeto.
Vejam esta narrativa da caminhada de 2017 por @amabile_pereiraa
“Em 2016 fui convidada pela amiga @andreastavares a subir a Serra de Ubatuba a pé e de noite, para acompanhar os peregrinos da 16° Romaria….esse ano recebi um chamado lindo e resolvi fazer o percurso todo: 3 dias e 2 noites. As pessoas se reuniram no centro de Ubatuba para a missa do envio, realizada na Igreja Matriz e em seguida demos início a tão esperada caminhada.
Zero horas de 30 de novembro: Subida da Serra de Ubatuba, momento incrível, úmido e escuro. 3:40 min de subida. Parada obrigatória na entrada do Núcleo Santa Virgínia para esperar a bandeira da retaguarda. 06:00 da manhã, início da caminhada rumo à Catuçaba, morro, e mais morro, natureza linda e segue o comboio à Lagoinha! 07hs de 01 de dezembro: Saída de Catuçaba com destino à Lagoinha! Trecho bem tranquilo, sem muitas subidas, cenário lindo com direito a parada na Cachoeira Grande de Lagoinha. Energia pura! Cabeça a mil, em oração e planos, muitos planos!!!
Agradecendo o tempo todo, chegamos em Lagoinha às 16hs debaixo de uma chuva deliciosa renovando tudo. Momento total de contemplação à vida, “admirar e pensar sobre alguma coisa”, alcançar Deus através da vivência pessoal e não meramente através de um processo discursivo. 5hs da manhã de 02 de dezembro: Saída de Lagoinha rumo à Aparecida. Paisagens incríveis e muito sobe e desce!!!! Com algumas paradas para abastecer. Chegada à basílica de Aparecida às 18hs, momento emocionante, misto de choro com risada, os sinos tocam, início da missa das “6”. Entramos e o choro vem mais forte, de joelhos ao chão agradecemos a peregrinação.
Muito obrigada parceira amiga @galdeanozaida foi sensacional nossa passagem, várias histórias! 17° Romaria a pé de Ubatuba à Aparecida. Do mar pelas montanhas. 3 dias de muita caminhada, orações, pensamentos, conversas, canal direto com Deus através da interseção da Mãe Maria em todo momento. Gratidão!
História – Rumo à Aparecida do Norte
“Em 1936, promessa moveu moradores do Sertão da Quina a caminhar até Aparecida.”
Pra quem vem ao bairro do Sertão da Quina se aventurar aos banhos de suas cachoeiras, quase que obrigatoriamente tem de passar pela Rua Benedito Antonio Elói, onde seu trecho foi roça de mandioca, cana, frutas, plantas medicinais, bananal, onde se via muito “tendal de café” (local para secar café feito de madeiras rústicas como o tronco do palmito e de umbaúba). O homenageado da rua era devoto de São Benedito, na sua casa de tapera eram realizados todos os anos as festividades em homenagem ao santo, não faltavam era doces de mamão, quentão, concertada (bebida a base de canela, cravo, melado e um pouco de cachaça), fogueira, era uma festa entre compadres e comadres que servia para estreitar os laços familiares.
Ele também era chamado de “Tibitilói”, isto é, Tio Benedito Elói. Casado com Ana Soares tiveram quatro filhos: Maria Elói, Filomena Elói, Conceição Elói e Elói dos Santos, só que o casal também carinhosamente adotou mais um casal: Benedita Juliana de Jesus e o moço Francisco que veio da “Serra Acima” acompanhado pelo Oliveira. Movidos pela fé, o casal havia pedido a intercessão de Senhora das Graças para que o casal tivesse um filho homem e que se realizado fariam uma caminhada até a cidade de Aparecida do Norte para batizá-lo. Como o casal tinha três mulheres, a vinda do quarto filho, um homem ajudaria muito o pai nos afazeres da roça.
A comadre Benedita Januária, que duas décadas atrás pôde ouvir a Santa, disse que a Nossa Senhora das Graças atenderia o casal, de fato Ana Soares ficou grávida de um menino, após o nascimento mais que depressa deram inicio as preparações. Na época ser padrinho ou madrinha era coisa muita séria, já que a eles seria passada uma grande responsabilidade, na falta dos pais, assumiam os padrinhos. Por outro lado, na região, os padres vinham apenas uma vez por ano, na época em que eles se vestiam apenas de preto.
Após muita conversa foram escolhidos o compadre José Pedro e a comadre Joana Maria de Jesus (irmã de Ana Soares). Precisaram de mais de três meses para preparar a saída, ainda tinham que entregar a farinha, feita em seu próprio viamento, na venda do Benedito Ozório na Maranduba, outras sacas, amarradas com cordas de imbira passados por uma agulha de arame foram levadas nas costas até a Vila de Santo Antonio – Caraguatatuba. Por conta da escassez, as mulheres tinham de preparar suas roupas para o grande acontecimento, com fazendas de chitas faziam vestidos novos, com sacos de panos as roupas para as crianças, preparavam a combinação (vestido íntimo de alça), levavam ainda o saiote de três marias ou anáguas em estilo reto.
Depois de tudo combinado começaram a subir a serra. Era 06 de maio de 1936, neste dia foram: o Zé Pedro, Geralda Justina, José Benedito Amorim, Januário Amorim, Benedita Januária, Pedro Rosa (que foi mais de 15 vezes a pé para Aparecida), Pedro Oliveira, Generosa Amorim, Mané Pedro, Maria das Graças, Benedito Elói, Ana Soares, Elói dos Santos, Joana Soares, Francisco (adotivo), Maria Balbina, Elais Correa, Ana Correa, Manoel Francisco Brak e Sebastiana Tereza.
Para matar a fome levaram os seguintes mantimentos: peixe seco, açúcar cristal, feijão, pó de café, sal, carne seca, biju, farinha pra sopa d´água, bolo de forno de farinha enrolado na folha de banana, colher, carne na gordura, farofa de torresmo, torresmo, frango assado na brasa, toucinho para assar no caminho, laranjas e bananas eram apanhados no caminho como complemento alimentar. Grande parte dos mantimentos era guardada em latas de banha e os sacos, que iam às costas, amarrados com imbira (casca de árvore), outros com timopeva ou imbé (cipó, um era duro e o outro maleável), para segurar as calças dos homens eram utilizados ainda fibra de bananeiras torcidas a mão como cinto.
Para a segurança eram levadas espingardas do tipo “espera que já vou” ou também conhecida como “quarentinha”, cartucheiras de carregar pela boca calibre quarenta, ou alguma Henrique Laporte calibre 36, facões não podiam faltar. Chegado o dia da caminhada, subiram pela Água da Preguiça, no caminho que vai para o Campo, chegaram as Palmeiras (bairro), descansaram e continuaram a caminhada. Chegaram as 6 horas da tarde no bairro da Fábrica (lugar de olarias, não existe mais) no entorno de São Luiz do Paraitinga, lá pousaram.
As seis da manhã partiram em direção à Taubaté, por sorte conseguiram carona em um caminhão que transportava tijolos e chegaram a Taubaté ao meio dia. Arrumaram as crianças, fizeram o almoço, os homens dormiram, já que para o pouso em lugar aberto os homens montavam guarda cuidando das mulheres, das crianças e dos mantimentos, só dormiam de dia no período do almoço que durava em média duas horas, quando não havia lugares prontos para pernoitar, tinham de abrir acampamento.
O caminho a noite era iluminada por fifó (lanterna feita de bambu) e sempre em lugar próximo a água, claro que quem podia levava um lampião a querosene. De caminhão foram a Aparecida e lá, no dia 07, chegaram por volta do meio dia. Uma das primeiras providencias foi comprar um cavalo de lenha, isto mesmo, um cavalo que puxava uma carroça e conforme o valor da paga vinha um número de lenhas para usar nos fogões. Na época a cidade não tinha mais de 100 casas e hotel, quer dizer pensão, era artigo de luxo, então o jeito foi dormir nos lugares de acampamentos e utilizar as dezenas de fogão que ficavam a disposição dos romeiros.
Enquanto os adultos se arrumavam as crianças não perdiam nenhum detalhe, eram lá que muitas delas viam pela primeira vez uma maçã, por exemplo, viam também tomate, pimentão, brinquedos, macarrão, carne moída, as lâmpadas nos postes, “máquinas de tirar retratos” e o que mais chamava a atenção na época eram os “pé de gato”, nada mais eram que os avós do tênis que calçamos hoje, que era um calçado feito de lona na lateral e o solado era de fios de cizal tão bem trançados que guardavam os pés confortavelmente. Rapidamente os pais e padrinhos de Elói foram até a igreja velha e marcaram para o dia 08 às 14 horas o batizado. Chega o grande dia e até banho demorado tomaram, pela manhã foi uma mistura de café com almoço, já que temiam perder o horário para o grande acontecimento.
Às 13 horas daquele dia se juntaram a outros que vieram para o mesmo motivo e uma hora depois o padre estava batizando Elói, tudo conforme havia relatado a comadre por intermédio de Nossa senhora das Graças. No dia nove pela manhã e para a tristeza dos pequenos, hora de partir. As crianças sabiam que a volta a Aparecida ia demorar muito, a vinda pro Sertão foi mais rápida e não menos cansativa, porém o alivio de ter cumprido a promessa deram a este povo simples uma nova missão e muito mais responsabilidades. A chegada foi na tarde do dia 11 de maio de 1936, a vizinhança já os aguardavam e queriam saber das novidades.
Atualmente todos os anos centenas de pessoas realizam a caminhada a pé para a Aparecida, esta demonstração de fé reforça não só os laços da religiosidade deste povo, mas também os laços culturais e saber que muitos de nossos antepassados já o faziam, não por opção, mas por maior devoção e por necessidade, já que não havia outra forma de ir ao Vale do Paraíba senão a pé.
Para os moradores do Sertão da Quina, a perda de Benedito Elói foi enorme, a família perdeu seu pilar mais frondoso, a história perdeu mais um ícone da cultura caiçara e as festas não foram às mesmas depois de sua partida. Embora reconhecido, muitos ainda acham que o nome da rua ainda é pouco pelo que este homem representou para a comunidade e que, por unanimidade, não se fazem mais homens como antigamente, alguns como Benedito Antonio Elói.
Baseado no texto de Ezequiel dos Santos
Publicado em https://www.maranduba.com.br/rumoaparecida.htm