Barbaridade! Há mais de três meses não chovia, numa estiada jamais verificada nestas redondezas. Aqui a chuva é uma constante no decorrer do ano e assim, uma seca como aquela exasperava a população, mormente a gente dos bairros que, se dependia da pesca, muito mais dependia da lavoura para garantir a própria sobrevivência. De chuva, nem sinal! O céu mantinha uma limpidez imaculada, um azul puríssimo, sem um mínimo resquício de nuvem que pudesse dar a esperança de um próximo aguaceiro! O ar, parado! Nem uma brisa, nem uma aragem para refrescar um pouco, fazendo balançar a ressequida galharia das árvores desnudas, murchas, desfolhadas…
Toda a região sofria por igual os efeitos daninhos da seca, mas os moradores da Praia das Toninhas, inconformados, afirmavam que lá era pior, que lá a areia da praia era mais quente que a das outras, chegando a tostar-lhes as plantas dos pés se não a evitassem, precisando caminhar por cima, por sobre o emaranhado dos “jundus”. Lá, diziam, dava pena olhar as roças, onde a plantação amarelecia esturricada sob a ação escaldante dos raios solares! Até a cachoeirinha que, sempre farta descia murmurante a encosta pedregosa, estava agora reduzida a um minguado filete de água, torturando o mulherio que amanhecia aglomerado ao pé da bica, na angustiante espera de encher o vasilhame! Seca tirana aquela!
E a pesca? Também falhara. Se todo santo dia, logo cedo, os pescadores saiam mar afora em busca do básico alimento para o seu sustento, retomavam alto dia, desanimados, com rebotalhos, trazendo aquilo que até há pouco desprezavam na praia à acirrada disputa dos famintos urubus.
– “É, dizia Tonico Honorato, patriarca da Toninhas, por isso mesmo acatado e respeitado, isso aí é castigo, e pelos pecadores pagam os inocentes… Já não há mais respeito, não há mais recato! Ninguém mais tem palavra! As igrejas vazias… Pra essa gente parece que Deus já não existe e seus mandamentos não valem mais nada. .. Isso é castigo!”
Na Toninhas o que Tonico Honorato dizia era sagrado. Se ele disse que aquela provação era castigo, outra coisa não cabia senão rezar. Enquanto os crédulos rezavam, aguardando o milagre da chuva redentora, Júlio e Camilo, dois inseparáveis rapazes do bairro passaram a observar o procedimento estranho de Marino, também amigo e companheiro, mas agora arredio, evitando-os com desculpas descabidas e alegações inconcebíveis.
A princípio não deram importância, mas num dado momento, como que acordando, ficaram intrigados com tal procedimento. Ainda mais porque, se a pesca fracassava para todos, por que para Marino era diferente? Ele não saía com os outros pela madrugada, mar afora, singrando as ondas. Ficava em casa entretendo-se em pequenos afazeres ou indo à roça em desnecessária vistoria às ressequidas plantas que teimavam vegetar nos aceiros. à tarde, porém, viam-no caminhar pela costeira com petrechos de pesca, saltando de pedra em pedra, indo ponta afora, para o Costão do Itapecericuçu, onde se demorava até o fim do dia, quando regressava com o balaio transbordando de peixes, bastante para o consumo da família e com sobras até para mimosear generosamente a vizinhança carente.
Para Júlio e Camilo, pensaram, desvendava-se o mistério: o bom pesqueiro estava para o lado do Itapecericuçu, portanto, bastaria ir lá. Mas, não querendo melindrar o arredio amigo, para lá se dirigiram várias vezes, cautelosos, a fim de não serem percebidos: umas, pela manhã, bem cedo, outras, alta noite, bem tarde. Interessante, se lá permaneciam horas inteiras, o resultado era sempre o mesmo: apenas dois ou três peixinhos de pouco mais de um palmo, daqueles sem condições de serem postejados…
Por quê? – indagavam-se – por que eles também bons pescadores, pescando no mesmo ponto, não conseguiam resultado igual ao de seu esquivo amigo? Convencidos de que um segredo maior havia e que era preciso desvendar, certa noite foram mais cedo e ocultaram-se entre moitas de samambaias, aguardando a chegada de Marino.
Após longa espera, viram-no chegar e encaminhar-se ao declive de extensa laje, quase plana, que descia em rampa suave aprofundando-se no mar. Viram-no, depois de acomodar seus petrechos de pesca, descer vagarosamente o declive e parar, absorto, olhando o mar, cujas ondas subiam mansamente, uma a uma, beijando-lhe os pés, para voltarem depois, borbulhantes e alvacentas, rendilhadas de espumas. Num dado momento um farfalhar mais forte agitou as águas próximas e dali emergiu uma encantadora mulher, inteiramente nua, que, com desembaraço galgou a penedia, mal disfarçando a total nudez com basta cabeleira entremeada de algas e de espumas!
Surpresos, viram Marino correr ao seu encontro, enlaçando-a nos braços, e ali permanecerem em doce e prolongado idílio! Que mulher era aquela, indagavam-se, jovem, encantadoramente bela, que emergia das águas, gesticulando como se fosse muda e vinha entregar-se em arroubos de amor a uma criatura humana? Não era por certo uma sereia, misto de peixe e de mulher que, com o enlevo de seus cânticos, em noites enluaradas atraía traiçoeiramente incautos navegantes a pélagos profundos, para a satisfação de voluptuosos desígnios de amor! Não! Aquela era mulher perfeita, de corpo escultural e beleza fascinante que ali permaneceu por longo tempo em arroubos de amor até que, vencendo a relutância de Marino, que tentava retê-la junto a ele, desgarrou-se dele e, rápida, solerte, atirou-se ao mar, desaparecendo no verde esmeraldino das águas.
Marino, então, pôs-se a pescar e em poucos momentos, como fazia todos os dias, regressou com farta provisão de peixes de grande porte – garoupas, sargos e badejos. Júlio e Camilo, atônitos com o que viram, voltaram outras vezes aquele pesqueiro, na esperança de desvendar o mistério de que eram testemunhas. Um dia a enamorada tardou a aparecer. O crepúsculo já se aproximava quando, emergindo airosa e bela, subiu apressadamente a inclinação da laje para entregar-se aos braços de Marino. Entretanto, ao contrário das outras vezes, demonstrava ansiedade em voltar ao mar e fazendo entender o seu intento, encontrava oposição de seu amante, que a prendia nos braços sem querer desgarrar-se dela. Parecia resolvido a mantê-la para sempre junto dele.
Compreendendo a situação em que se achava, a jovem passou a debater-se desesperadamente, querendo gritar mas sem conseguir desprender a voz, nem emitir um gemido sequer! Na luta que se desenvolvia Marino apercebeu-lhe, na boca exageradamente aberta, a garganta obstruída por enorme guelra vermelha, que nos peixes funciona como órgão respiratório. Instintivamente, sem vacilar um instante, introduziu lhe dois dedos na boca e num gesto rápido, volteando-os, estirpou, esponjosa e sanguinolenta, a guelra que a impedia de falar, mas que lhe dava condições de viver mergulhada nas águas do oceano. Foi então que de seu esconderijo os dois rapazes ouviram a jovem falar e perceberam que, trocando juras de amor, perfeito entendimento se estabeleceu entre eles: ela seria Ondina, filha das ondas e, casada com Marino, formariam, os dois, o venturoso lar dos Marinhos.
Logo mais, protegidos pela sombra da noite que descia alcoviteiramente, o jovem par encaminhou-se à Toninhas, à casinha nova coberta de sapé com beirais rendilhados de róseas trepadeiras, que Marino havia construído há pouco, e lá, como em todas as histórias, a família Marinho cresceu, multiplicou-se e viveu muitos e muitos anos, alegre e feliz. Não posso afirmar, mas dizem que ainda há muito Marinho por aí…
Fonte: Narração de Washington de Oliveira (“Seu Filhinho”), extraída do livro “Ubatuba, lendas e outras histórias”