A história que vou contar nada tem absolutamente com o famoso pico que orna o belíssimo pano de fundo.do maravilhoso cenário que é a Baía da Guanabara. O Corcovado em questão é o que se encontra próximo desta cidade de Ubatuba, para as bandas do sudoeste. É uma formidável corcunda de pedra que se eleva da silhueta da Serra do Mar, fazendo realçar essa giba desde Picinguaba até a ponta do Martim de Sá, nas proximidades de Caraguatatuba.
Aqui o Corcovado não tem a airosidade e o prestígio do seu colega do Rio de Janeiro, não recebendo visitas de turistas deslumbrados. Não recebe, mesmo porque as rejeita. Castiga severamente quem ousa mergulhar no mistério em que vive. Ouçamos: Pouco depois de Jordão Homem da Costa vir com diversas famílias povoar a antiga aldeia de Iperoig, já então com o nome de Ubatuba, aventureiros daquele tempo quiseram ir ao topo do Corcovado. Os primeiros que isso tentaram foram dois rapazes, jovens ainda, Pablo e Juan, filhos de um fidalgo espanhol, proprietário aqui de vasta sesmaria.
Partiram aos primeiros clarões de uma fresca madrugada de abril, confiantes no êxito dessa aventura. Mas, passaram-se dias sem que voltassem, começando aí a inquietação na família dos moços. Julgou-se que eles se haviam perdido, mas, ao certo, não se conseguiu saber por que não regressavam. Um escravo do espanhol, favorito de Pablo, prometeu ao seu amo ir buscar notícias do “Sinhô Moço” no cimo do gigante de pedra. Seus companheiros, ao pé da escarpa, viram-no subir agilmente agarrando-se aos cipós e às saliências da pedra e depois sumir lá no alto por entre moitas de samambaias. Esperaram-no até o dia seguinte. Nada. Voltaram outros dias à sua procura, mas, como os desventurados Pablo e Juan, nunca mais o negro apareceu.
Em 1697, quando ao primeiro centenário da morte de José de Anchieta, veio de São Vicente rezar missa na capelinha de Ubatuba por intenção da alma do grande catequizador, frei Bartolomeu, da Ordem dos Franciscanos. Esse frade permaneceu mais alguns dias nesta vila e, ouvindo dos habitantes a narrativa do fato acima relatado, e de outros que se sucederam, declarou decididamente que iria ao topo do Corcovado, onde, para provar a ascensão, colocaria uma grande bandeira vermelha, perceptível aos que o acompanhassem até ao pé, da aterrorizadora escarpa. E se bem o disse melhor o fez. A grande comitiva que nesse lugar ficou postada viu, horas depois, bem lá no alto, o desfraldar da sanguinolenta bandeira que frei Bartolomeu levara consigo.
Um frêmito de alegria espalhou-se por todos aqueles observadores, ansiosos pela volta do padre que, de regresso por certo desvendaria o porquê misterioso do Corcovado. Esperaram-no debalde. Alguns homens dos mais corajosos dispuseram-se a ficar durante a noite à espera do missionário. Mas era por demais apreensiva a situação daqueles homens. O silêncio parecia estrangular a natureza que, de instante a instante, num arranco horrível, gemia agonicamente pela garganta de um pássaro noturno. Meia noite! Seria meia noite, quando uma exclamação quase de alívio partiu daqueles peitos ofegantes:
– Ei-lo!
De fato, pela rocha nua, lentamente, arrastava-se frei Bartolomeu, pelo mesmo trajeto pelo qual havia subido. Devia estar cansado. De vez em quando parava arrumando o hábito marrom, sustendo na cintura o frouxo cordão branco, e parecendo levar por vezes aos lábios o níveo crucifixo de marfim que lhe pendia ao peito. Um vago clarão de lua jorrou sobre a monástica figura denunciando uma palidez funérea em suas faces tristes e descamadas. Correram todos para recebê-lo, mas…
– Onde está frei Bartolomeu?! perguntaram-se com os olhos. Não mais o viram. Esperaram-no mais algum tempo, porém o frade não desceu. Um deles gritou e o eco respondeu lá no fundo, nas gargantas sombrias da cordilheira. Logo depois um gemido horrível partiu, não sabem de onde, envolvendo a floresta inteira! Um frio de morte, uma sensação ignota agitou as carnes daqueles homens. Sem articular palavra, lívidos, completamente desnorteados, abandonaram em disparada aquele sítio maldito, ouvindo o eco sumir longe, muito longe, na imensidão da noite!
Hoje ainda, à meia noite, quem se for postar ao pé, da misteriosa elevação verá a figura do venerável frei Bartolomeu descer lentamente pela rocha nua, sem nunca, porém, chegar à base. Dizem que o Corcovado é encantado, ocultando uma rica mina de ouro pertencente a um gênio que a defende dos homens.
Fonte: Narração de Washington de Oliveira (“Seu Filhinho”), extraída do livro “Ubatuba, lendas e outras histórias”