A canoa é um forte elemento da cultura caiçara, representa um modo de vida, uma herança material baseada nas relações das comunidades do litoral sudeste do Brasil com o meio ambiente e com a história social e econômica da região. Este artigo valoriza esse patrimônio cultural e mostra as técnicas e conhecimentos presentes no feitio da canoa caiçara em Ubatuba.
Há dez anos, o Instituto Costa Brasilis iniciou o projeto “Com quantas Memórias se faz uma Canoa”, idealizado pelo folclorista Ney Martins que lutou muito para garantir a preservação e respeito pela cultura popular, reanimando, recolhendo e registrando como pôde as expressões tradicionais caiçaras. Quis o destino que Ney falecesse logo no início do projeto, como se seu último trabalho fosse garantir que houvesse um registro das canoas caiçaras em Ubatuba. Durante sete meses a equipe do Instituto visitou as praias e comunidades de Ubatuba, conversando com construtores e donos de canoas, fotografando, entrevistando os caiçaras, acompanhando a construção de canoas.
Tudo para conseguir mostrar como um tronco de árvore esculpido pode ser uma representação tão importante da cultura caiçara. Com as informações obtidas, a equipe se desdobrou para a produção de um livro que expressa o que foi registrado e um documentário que apresenta a essência do trabalho para todos. Mostrando com quantas memórias foram feitas cada canoa, cada caiçara, cada pedacinho da história caiçara.
A Construção de uma Canoa
Antes de utilizar uma madeira, mesmo que esteja caída na mata de forma acidental para confecção de uma canoa, é preciso ter a liberação do IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) ou do órgão competente que atue no licenciamento, controle e monitoramento ambiental, lembrando que é expressamente proibido fazer a derrubada de árvores na Mata Atlântica.
As melhores madeiras da região de Ubatuba para se fazer canoa são o Ingá Amarelo, Timbuíba, Cedro, e o Ingá Flecha, sendo que o tempo para finalizar uma canoa é por volta de 30 a 45 dias, e o trabalho é realizado na maioria das vezes dentro da mata no local da queda da árvore, utilizando algumas ferramentas especiais para o acabamento da canoa. Um tamanho comum de canoa é entre 3 a 4 “palmos de boca (largura)” e 5 metros de comprimento, e a mesma se bem cuidada pode durar mais de 40 anos, e a melhor forma de preservar uma canoa é guardá-la dentro de um rancho e evitar deixar a rede de pesca dentro dela, pois esta geralmente está úmida.
Veja a segui o documentário “Canoa Caiçara” produzido pelo projeto Instituto Costa Brasilis:
Sobre Árvores, Madeira e Construção Naval
Para falar sobre a construção de canoas ou pranchas de surf de madeira, devemos antes entender a manipulação da madeira. A arte de manejar este recurso natural em técnicas de carpintaria, construção naval e marcenaria podem tomar ares míticos e exige todo o respeito, afinal é um ofício dos mais antigos, desde os nativos da Polinésia, África e América, aos hebreus (Jesus era carpinteiro), árabes, nórdicos e europeus, em todos os cantos do mundo existiram carpinteiros e marceneiros.
Seguem algumas informações sobre a escolha da árvore e a preparação da madeira. Apesar destas informações não serem tão úteis nos dias de hoje, em que encontrar a arvore certa é uma missão dificílima e derrubá-las é crime, a matéria serve para lembrar as culturas que estão entrando no esquecimento e foram as bases do surf, assim como da navegação.
Da arvore à madeira
A escolha da arvore se dá pela madeira, portanto, antes de escolher o indivíduo deve conhecer suas propriedades. Antes da utilização de uma árvore para construção de qualquer embarcação, deve ser feita uma inspeção minuciosa, observando a superfície do tronco, procurando os nós, cicatrizes, fendas ou fibras muito torcidas. Batendo com algum objeto ao longo do tronco percebem-se variações do som, indicando diferentes densidades, possivelmente por motivo de doença ou apodrecimento prematuro. Após o corte outros sentidos também permitem certificar-se do tipo de madeira, a fase de preparo e a hora de trabalha-las. A cor permite saber facilmente se a arvore teve alguma doença, devido mudanças bruscas, vista em um corte transversal. Cada espécie possui um cheiro característico, especialmente depois de seca.
A época ideal para extrair a madeira varia segundo a espécie e região, mas de forma geral costuma ser no início do inverno, assim que as folhas caem, quando acontece o repouso vegetativo. Estes procedimentos possuem relação com a circulação da seiva, pois nos meses de primavera, verão e princípio do outono os troncos ainda estão impregnados de alimentos para folhas, flores ou frutos, aumentando o tempo de secagem e prejudicando a conservação da madeira, pois as substâncias que compõe a seiva atraem fungos e insetos. Outro fator que influencia o corte da arvore é a lua. As fases minguante e nova costumam ser melhores, e o período de maré cheia está relacionado com a maior quantidade de seiva nas arvores.
Após o corte é essencial a seiva secar completamente, assim como a retirada da casca, que dificulta a secagem e esconde larvas e insetos que corroem o tecido lenhoso. Para secagem existem muitas técnicas, atualmente o mais comum é ao ar livre, em galpões ou estufas, sendo que, mais importante que manter a madeira coberta é não deixá-la em contato com o solo. No entanto, para construção naval existem tradições muito eficazes na secagem da seiva que garantem grande durabilidade à embarcação. O costume é mergulhar o tronco em água doce (rios e lagos), ou na água salgada do mar. O mais aconselhável é deixar no lodo das zonas estuarias (rios que desembocam no mar), evitando o apodrecimento prematuro ou o aparecimento de fendas. O mais espantoso são relatos de que, dependendo do tipo de madeira e espessura do tronco, a secagem poderia durar de 3 a 10 anos.
Produtos e cuidados para conservação da madeira
A durabilidade depende primeiramente da secagem da seiva. Sendo assim, a principal forma de tratamento da madeira é mantê-la seca e arejada ou totalmente mergulhada na água, pois madeiras imersas não apodrecem ou apodrecem muito lentamente. É muito comum encontrarmos ao longo do litoral brasileiro, canoas afundadas na água, pois rios, lagoas e principalmente o mar evitam o apodrecimento muito melhor do que os produtos disponíveis no mercado e sem custo nenhum.
A água não estraga a madeira, mas a constante mudança de ambientes secos para úmidos causam dilatação e contração da madeira, causando fissuras com o tempo. Dessa forma, o tratamento mais tradicional para canoas ou cascos de pequenas embarcações de madeira é com soluções oleosas ou ceras que evitam que a madeira encharque ou sequem completamente. Estes produtos podem ser de origem animal (óleos de peixe, cera de abelha), vegetal (cera de carnaúba, óleo de linhaça), ou mineral (betume, asfalto diluído em diesel, óleo queimado). Estes produtos são bastante eficientes para conservar embarcações rusticas, como canoas, mas necessita a madeira estar bem seca para a primeira aplicação.
Outras soluções industrializadas contribuem para conservação da madeira, como o alcatrão, alvaide, ACA, CCA, CCB, sais de cobre, cromo e arsênio aplicados em autoclave, todos com boa eficácia e disponíveis no mercado. A aplicação dos produtos pode ser por imersão, pulverização, pincelagem, ou ainda banho quente-frio (a madeira é aquecida por várias horas e depois imersa em solução que permite grande penetração e absorção a vácuo).
Colas e outros métodos de impermeabilização
Madeiras coladas podem desempenhar função melhor do que tábuas maciças, por aguentarem maior flexão. A chamada cola de marceneiro é uma das mais antigas, conhecida também como cola animal e é feita a base de pele, cartilagem e osso de animais. Vendida em pó, quando em banho-maria se torna gelatinosa, fácil de aplicar, e depois de seca fica dura e impermeável, penetrando nos tecidos da madeira.
A cola sintética disponível no mercado para carpintaria naval leva um catalizador no preparo e serve para qualquer tipo de ligação. Outra opção é o Epóxi (resina epoxida), uma das colas e resinas de isolamento mais eficaz da carpintaria naval, usadas para proteger, colar e impermeabilizar desde cascos de barco a pranchas de surf.
A Canoa – Símbolo do Caiçara
Até hoje a canoa é um importante instrumento de trabalho para os caiçaras, e veja esta curiosidade de antigamente: “O caiçara ao pedir a mão de uma moça em casamento, o pai da moça consentia mediante os seguintes dotes do rapaz: uma roça de mandioca, uma plantação de bananas e uma canoa. Sem a canoa, o caiçara ficava solteiro pro resto da vida”
Fontes de informações:
https://madeiraeagua.blogspot.com.br/2012/09/sobre-arvores-madeira-e-construcao-naval.html
https://costabrasilis.org.br/