Ubatuba tem algumas curiosidades impressionantes, como o caso do francês Jean Pierre Patural que construiu seu próprio avião e fazia o trajeto Ubatumirim – Vale do Paraíba com frequência, e isso em meados da década de 1950. Jean Pierre morava em Taubaté quando comprou um sítio no sertão do Ubatumirim, construiu sua casa, cultivou sua terra, e construiu seu próprio barco para distribuir suas colheitas.
Insatisfeito com a precariedade de acesso a Ubatuba naquela época, tendo conhecimentos prévios de engenharia, encomendou um projeto de avião francês, seguiu as orientações dos manuais e montou seu próprio avião. Fez curso de pilotagem, tirou o Brevê ganhando assim agilidade em suas várias viagens de negócio, em especial com o Vale do Paraíba e se tornou um pioneiro na aviação do litoral norte de SP.
História contada por Silvia Pollaco Patural
Este é um resumo da conversa com dona Silvia (esposa de Jean Pierre) que trata da aventura fantástica de um jovem casal de franceses que sonharam com uma fazenda exemplar na Sesmaria do Ubatumirim, em 1954, quando nem se sonhava com a abertura de estrada para a porção norte do município de Ubatuba. Para se chegar naquelas distâncias tínhamos duas alternativas: ou se arriscava numa canoa, ou se embrenhava pelos “caminhos de servidão”, subindo morro, andando em praias, atravessando rios, como era coisa comum aos caiçaras daquela época.
Poucas pessoas faziam investimento em Ubatuba, um desses poucos foi Félix Guisard, da Companhia Taubaté Industrial, que teve a iniciativa de apresentar ao jovem casal de franceses o quanto este pedaço de Brasil tinha de promissor, mesmo estando tão isolado, com os caiçaras que só tinham o “de comê”. Naquele tempo quem queria ver dinheiro migrava para a labuta nos bananais da Baixada Santista, ou ia morar em Caraguatatuba e trabalhar na fazenda dos ingleses.
Leiam a narrativa a seguir, contada por dona Silvia Pollaco Patural (em 30/04/2002), esposa de Jean-Pierre (o autor da façanha) e se impressionem com esta história e curiosidade de Ubatuba.
A vinda para o Brasil
“Nós não caímos do céu, de repente. A nossa vinda para o Brasil foi bem refletida, mas não deixou de ter uma forte dose de ousadia e coragem. Meu marido fez, na França, um curso de Agronomia Tropical. Era uma escola para administradores e funcionários do Estado, com a finalidade de trabalhar na África, na Ásia, enfim, nas áreas que eram colônias francesas.
Aconteceu que, com a descolonização, acabou tal finalidade. Porém, ele pretendia investir naquilo que aprendeu. Havia também o risco de ser convocado para a guerra (da Indochina). A solução era procurar outro país, começar outra vida praticando as habilidades adquiridas em agronomia e zootecnia. Por isso passamos a fazer uma avaliação dos países, de preferência com características tropicais, examinando bem todas as possibilidades. Pensamos no México e em outros, mas o Brasil nos pareceu mais interessante.
Passamos a outra fase, que foi conhecer melhor o país: ouvimos palestras, assistimos ‘slides’, etc. Só sei que ficamos por dentro das culturas mais favoráveis (banana, café, cacau…) e das reais condições para um empreendimento agrícola no Brasil. Assim, no ano de 1948, embarcamos em Bordeaux e desembarcamos no porto de Santos. De Santos, uma importante cidade portuária já naquela época, seguimos para a capital paulista. E, modestamente, por eu falar perfeitamente o italiano, pois era italiana de nascimento e, em nossa casa, mesmo estando na França, sempre falávamos a língua italiana, me saía muito melhor que o meu marido que, além do francês, só falava inglês. O italiano é mais compreensível aos brasileiros, né?
No início, para nos mantermos, começamos a dar aulas de piano e francês. É preciso lembrar que, naquele tempo, a língua francesa tinha um ‘status’ comparável à língua inglesa nos dias atuais. Logo nos encontramos com um patrício que se sensibilizou com a nossa situação e nos apresentou a possibilidade de irmos para a cidade de Taubaté, pois achava que não era uma boa alternativa continuarmos na cidade grande. Disse-nos ainda que nas proximidades de Taubaté e em outras cidades do Vale do Paraíba havia muitas fazendas, com possibilidades de realizarmos o nosso sonho. Assim deixamos a cidade de São Paulo.
Conhecendo Ubatuba
Chegamos esperançosos em Taubaté, mas as condições também não estavam tão favoráveis. Nesse ínterim nasceu Patrícia. Deste tempo é a experiência de arrendamento de um sítio em Redenção da Serra, onde ensaiamos um modelo de produção, sobretudo de batatas. A seguir conhecemos Ubatuba. Através de um convite de uma família muito amiga, os Guisard, viemos, em 1953, conhecer Ubatuba. Eles eram os donos do Casarão, onde está atualmente a sede da FundArt. Foi em uma de suas casinhas, atrás do Casarão, que nós ficamos hospedados.
Meu marido, Jean-Pierre, se entusiasmou pela cidade. É preciso lembrar que ele adorava o mar; era um velejador em nossa terra natal. Ainda temos a foto de seu primeiro veleiro na região do Canal da Mancha, Bretanha, norte da França. Logo se empolgou em investir aqui. Em 1954 nós partimos à procura de um lugar que, além de agradável, oferecesse as condições propícias de cultivo e de instalações. Meu marido era um empreendedor. O lado sul do município logo ficou fora de cogitação. Motivo: a abertura da rodovia Ubatuba-Caraguatatuba estava sendo concluída, fazendo com que os preços das terras daquele lado encarecessem muito. Então nos falaram do lado norte, das vastas áreas e de outras vantagens.
Num final de semana, após deixarmos a Patrícia com alguém de muita confiança em Taubaté, começamos a nossa aventura para o lado norte do município. Por volta do meio-dia deixamos a cidade, seguindo sempre a pé. Passamos o Perequê Açu, o Saco da Mãe Maria, a Praia Vermelha com suas areias grossas, a Praia do Alto, que até hoje é muito bonita, a Praia de Itamambuca. Imagine tudo isso a pé e com muito calor! Depois chegamos ao morrão da praia do Félix e, finalmente, paramos ao escurecer, na praia do Léo, aquela que, devido a um desabamento da estrada após forte chuva, está soterrada numa boa parte.
Na praia do Léo batemos palmas numa casa e perguntamos se havia ali por perto alguma pousada ou coisa do gênero. Imagine só!!! Isso era comum na Europa. Disseram que não. Nos ofereceram um pouso, numa cama simples com esteira de taboa. Foram muito gentis conosco. No dia seguinte, já sabendo dos nossos motivos, disseram que para os lados do Ubatumirim e do Puruba é que tinha boas terras. E era mesmo! Pura verdade! No rio Puruba paramos e esperamos um bom tempo até que o balseiro aparecesse. Parece que ele estava almoçando, depois deve ter dormido um pouquinho. Nem me lembro mais direito deste detalhe. Só sei que ele apareceu e, assim alcançamos a praia da Justa. Finalmente, depois de um pequeno morro, estávamos no Ubatumirim.
As terras do Ubatumirim
De fato as terras do Ubatumirim, sobretudo as da Sesmaria, nos agradaram muito. Aí fomos acolhidos na casa da família do Manoel Leopoldo. Para a dormida nos dispuseram uma sala com esteiras e penico, onde havia um montão de sapê secando. Era um calorão de janeiro; baratas passeavam por todos os lados. Ao abrirmos a porta para a entrada de frescor, também entraram os cachorros. Mesmo assim, nós, de tão cansados, desmaiamos.
No dia seguinte fomos conhecer a Sesmaria, dos Nunes Pereira. Gostamos muito. Ainda bem que a volta para a cidade foi de canoa. Chegando à cidade, logo procuramos nos informar sobre a situação legal daquelas terras. Quem nos deu segurança e nos garantiu da propriedade dos Nunes Pereira foi o coronel Ernesto de Oliveira, pai do “Filhinho” (da farmácia). Satisfeitos e cansados embarcamos no ônibus para Taubaté. A viagem durava em média quatro horas, mas o tempo tinha de estar bom, sem chuva, senão…
Após um breve período fizemos a segunda viagem para o Ubatumirim. Desta vez a noite nos alcançou na Praia da Itamambuca. Novamente pedimos pouso, mas as condições estavam tão críticas, enquanto que o luar e a noite estava tão convidativos, que acabamos pegando uma humilde coberta que nos ofereceram e fomos dormir nas areias da praia. Jean-Pierre somente ajeitou os “travesseiros” com a própria areia. Só sei que acordamos no dia seguinte com o sol brilhando e a maré quase nos alcançando os pés.
Chegando no Ubatumirim nos reencontramos com o Mané Leopoldo e compramos a Sesmaria do Ubatumirim, que era dos Nunes Pereira. Ela distava seis ou sete quilômetros da praia. Mais tarde nós compramos mais uma posse. Logo iniciamos a plantação de bananeiras, alcançando a marca, em poucos anos, de trinta mil pés. A primeira dificuldade sentida era com relação ao deslocamento, pois se perdia muito tempo indo a pé desde a cidade até o Ubatumirim. Me parece que pelo mar a distância era de vinte e dois quilômetros, enquanto que por terra, seguindo o caminho usual dos caiçaras, perfazia trinta e seis quilômetros.
A construção do barco e do avião
Eu trabalhava lecionando francês em Taubaté, enquanto o meu marido se dedicava com exclusividade ao nosso empreendimento em Ubatuba, pois tínhamos camaradas que precisavam ser orientados e acompanhados em seus trabalhos, senão… Dessa necessidade surgiu a ideia de se fazer um barco. Foi quando o nosso quintal em Taubaté se transformou num “mini estaleiro”, recebendo as madeiras e o motor de centro modelo Ford alemão.
Logo o barco ficou pronto. E agora? Como tirá-lo do quintal? Ainda bem que no terreno ao lado não havia nada de construção. A solução foi derrubar um pedaço do muro, passar o barco e, depois, refazer a parede. Um caminhão foi utilizado para trazer o barco até Ubatuba. Parece-me que foi o primeiro barco registrado na Colônia dos Pescadores. Isso foi em 1956. Ainda temos tal documento em perfeito estado de conservação. Esse barco nos foi muito útil. Porém, em diversas ocasiões em que precisávamos dele passávamos raiva, pois os empregados se aproveitavam das nossas ausências e saíam para passear ou pescar. Isso gastava a nossa paciência.
O barco ajudava, mas mesmo assim, devido ao gênio de praticidade do meu marido, se fazia necessário outra alternativa de transporte que diminuísse a perda de tempo. Havia também, no caso do barco, uma dependência das condições do mar. Nesse ínterim já tínhamos construído a nossa primeira casa no Ubatumirim. Assim, Jean-Pierre resolveu adquirir um avião, ou melhor, encomendou as instruções de uma empresa francesa. Novamente o nosso quintal em Taubaté se transformou.
Agora era um hangar. Logo estava pronta a fuselagem; as asas deram mais trabalho. Um serviço que mais me impressionou foi a confecção da hélice: dos pedaços de madeira marfim surgiram as pás com suas aerodinâmicas perfeitas. Depois de pronto ele saiu do nosso quintal seguindo o mesmo modo da retirada do barco.
Após aprovação do Centro Técnico Aeroespacial de São José dos Campos, Jean-Pierre tirou brevê de piloto no Campo de Marte, em São Paulo. Aí foi uma maravilha!!! A partir de Pindamonhangaba, pois em Taubaté não havia campo de aviação, levávamos trinta e oito minutos até alcançarmos a nossa área de pouso no Ubatumirim, que construímos na proximidade da nossa casa. Na cabine havia espaço para duas pessoas; a Patrícia ia no colo.
A vida no Ubatumirim
Aproveitávamos as férias escolares todas na roça. Quando a Patrícia tinha quatro anos, nasceu Jean-Pierre Patural Júnior. É, pois é! Ele nasceu no Ubatumirim! Ele veio antes do previsto. Essas coisas acontecem; as mulheres entendem bem disso: as crianças não nascem no dia em que achamos que vão nascer. Estávamos no Ubatumirim, na nossa aconchegante casinha, quando comecei a sentir as contrações.
Só que eu não fiquei nem um pouquinho preocupada, pois confiava muito no meu marido. Ele também era zootecnólogo; tinha sido o parteiro no momento do nascimento da Patrícia, em nossa casa de Taubaté. E, convenhamos, cá entre nós: não existe muita diferença entre o parto de uma mulher e o parto de uma vaca. Além do mais eu pensava: muitas mulheres já deram à luz neste lugar, com condições mínimas de higiene; seus filhos estão todos vivos. Isso sem contar que tínhamos uma farmácia bem montada para atender, em casos de emergência, a população local. Ah!!! Quantas vezes ela foi usada!!!
Assim nasceu a nossa segunda criança. A única inconveniência foi a falta de roupinhas e de fraldas para protegê-lo. Um lençol, que ainda era parte do nosso enxoval, foi cortado em pedaços regulares e resultou em oito fraldas. Ah! Nós mantínhamos na praia um ponto comercial, uma “vendinha”, para atendimento, sobretudo, dos empregados. Lá tinha, inclusive, o morim, que era um tecido muito barato. Foi de lá que o meu marido trouxe os panos que eu os transformei, costurando à mão, em várias pecinhas de roupas. Um balaio serviu de berço para o bebê.
Carmem era uma adolescente com quinze anos quando o Jean-Pierre nasceu. Desde cedo ela adotou o menino; foi a babá desde o primeiro instante. Nós a levamos para Taubaté e, ela só deixou a nossa casa para se casar. Foi como uma filha. Era gente do Apolinário. Atualmente mora no Jardim Luamar (Estufa II) e está muito bem. É certo que passou por certas dificuldades, mas soube usar a cabeça. Estamos felizes por ela. Só tem uma coisa que me marcou bastante: a volta com o bebê para Taubaté. Ainda estava toda dolorida e tive que vir de canoa para a cidade, depois embarcar no ônibus para Taubaté e enfrentar tantas horas de sacolejo numa estrada medonha.
A compra do trator
Após seis anos plantando, com vários funcionários (Dito Rolim, Melentino…), a plantação estava em franca produção, começando a dar lucro. Surgiu a necessidade de aprimorar o transporte dos produtos. Era o ano de 1958 quando compramos, na Casa Granadeiro, em Taubaté, um trator. Questão: Como trazer o trator para Ubatuba, depois levá-lo até o Ubatumirim? Solução: Desmontá-lo todinho, transportar pela rodovia e pelo mar, e, remontá-lo na roça, onde ficou definitivamente.
Aconteceu a melhoria na estrada da Sesmaria para o trânsito adequado do trator. Para levar o trator até o bananal, Jean-Pierre abriu uma estrada de sete quilômetros, sem máquinas, apenas com foices e enxadas. No local denominado “Gurita” foi preciso fazer uma ponte de madeira que fosse bem resistente para que pudesse passar o trator puxando a carreta carregada de bananas. Ele ainda ensinou um empregado chamado Freitas a dirigir o trator, dando algumas noções de mecânica. Pensava, num futuro próximo, ensinar outros rapazes e montar um curso para a formação de técnicos agrícolas. Foi uma grande novidade. Era gostoso ver o trator repleto de meninos, com o meu marido passeando com eles; lotavam a carroceria. Essa condução era atrelada a um carroção que escoava toda a produção para a praia, onde um barco grande, cujo nome era Manaus, comprava tudo.
O desastre
Chegamos à parte mais dolorosa da história de Jean-Pierre Patural e familiares. Em 1961 aconteceu o desastre. Numa véspera de embarque de bananas, Jean Pierre decolou para Ubatuba. Ao chegar ao Ubatumirim constatou que uma peça fundamental para que o trator funcionasse estava quebrada e, a urgência do serviço fez com ele retornasse no mesmo dia para Taubaté. Estranhamos o seu retorno.
Como sabíamos que ele tinha retornado? Era fácil, pois o hábito dele era, antes de aterrissar em Pindamonhangaba, dar um voo rasante sobre a nossa casa. Assim, calculávamos que após uma hora já estaria conosco. Era o tempo suficiente para acomodar a aeronave no seu devido espaço e tomar um ônibus que circulasse entre as duas cidades.
Assim fez ele: providenciou a peça e retornou para o Ubatumirim. Tinha pressa porque o barco passaria no dia marcado, para fazer o embarque da grande carga bananeira prevista. Foi quando aconteceu o desastre. Estranhamos a sua não chegada no dia esperado; nem no outro, nem no outro. Quando recebemos o telegrama do capitão do barco bananeiro dizendo que Jean-Pierre não havia estado no Ubatumirim e que não tinha encontrado nenhuma carga de bananas na praia, desconfiamos que o pior já tinha acontecido.
Imediatamente entrei em contato com a fábrica CTI (em Taubaté) que tinha uma linha telefônica direta com Ubatuba. Assim confirmei que o meu amado tinha desaparecido. Com o auxílio de amigos, funcionários da Mecânica Pesada, chamamos o Batalhão de Exército de Pindamonhangaba. Assim foram iniciadas as buscas pela Mata Atlântica. Após uma semana só o avião foi encontrado: estava totalmente destroçado.
As buscas continuaram sem nenhum resultado. Desesperada, chamei uma equipe de paraquedistas de São Paulo especializada nesse tipo de busca. Em vinte e quatro horas encontraram o corpo de Jean Pierre na beira de um rio, cuja distância era, aproximadamente, quatro quilômetros dos destroços do avião. O avião, modelo “teco-teco”, provavelmente foi jogado na mata por uma dessas fortes rajadas de ventos, tão comum de ocorrer naquela época do ano. Foi essa a suposição de um comandante das buscas. É quase certo que tenha sido assim mesmo.
O avião caiu não muito longe da estrada, numa distância média de cinco quilômetros. Ele se feriu e, segundo o laudo pericial, ainda sobreviveu uns cinco dias. Isso se deduziu pela grande distância entre os destroços do avião e o corpo desfalecido. É certo que teria se salvado se tivesse tomado a trilha certa: bastava seguir o lado da bifurcação que o conduziria à estrada em vez de se enganar e acabar por embrenhar-se ainda mais na mata fechada. Mas… se é fácil de se enganar pelas veredas quando estamos sãos, imagine as grandes probabilidades para quem estava ferido e não estava ainda tão familiarizado com a Mata Atlântica. Talvez também tivesse sido socorrido pelos caçadores se fosse tempo de caçadas. Mas não era. Entre o momento em que eu recebi o telegrama de Santos (do comprador das bananas) e o desfecho final (encontro do corpo), passaram-se vinte e um dias. Era o ano de 1961; meu marido tinha trinta e dois anos.
A mudança para a região central de Ubatuba
Depois disso tudo ficou muito difícil. Imaginem uma viúva, com dois filhos pequenos, se deslocar de Taubaté para o Ubatumirim num tempo de péssimos transportes, quando nem se sonhava em estrada de rodagem para o lado norte do município. É bom lembrar que a BR-101 só foi se tornar realidade quinze anos depois da tragédia. No entanto, ainda eu estive alguns períodos de férias em nossas terras: uns dois ou três anos consecutivos. Depois tive que largar tudo, me dedicar ao trabalho e às crianças.
Depois da morte de Jean Pierre tentei conservar as posses. Foi muito difícil, pois a eminência da abertura da rodovia provocou uma verdadeira loucura. Compradores de todas as partes surgiram com malas repletas de notas de pouco valor, mas que pareciam uma fortuna para os ingênuos caiçaras; assim adquiriram as posses. Não me sai da lembrança um caso, de 1965, que muito me chocou: foi a troca de uma belíssima posse entre a praia e o rio, no Ubatumirim, por uma casinha popular inacabada no bairro da Estufa II, num terreno sem qualquer documentação.
Depois vieram os grandes grileiros, chegando a ocupar áreas com homens armados. Para uma mulher sozinha era impossível enfrentar esses jagunços. Assim, pensando nos meus filhos e já lecionando na Unitau, além de estar cansada de passar todas as minhas férias e alguns finais de semana nessa luta, deixei a casa da praia aos cuidados do Benedito Rolim. O Sertão da Sesmaria do Ubatumirim ficou sob os cuidados de outro empregado chamado Melentino.
Quando o Dito Rolim se ausentou por questões particulares, a posse da praia foi invadida. Porém, graças à dedicação e competência do doutor Manoel Casal del Rey Aspera, após seis anos de processo, conseguimos reaver a área e, num acordo com o próprio advogado, a trocamos por uma casa no bairro do Tenório. Após reformas, nós a alugamos na temporada.
Infelizmente não tive sorte com a Sesmaria, pois o meu caseiro Melentino tentou uma ação de usucapião, mas sem nenhum êxito. Apesar disso declarou-se dono da Sesmaria e, há anos, vem vendendo pequenas áreas a compradores de Ubatuba que sabem perfeitamente que o mesmo não é proprietário. A Patrícia, minha primeira filha, assim que alcança os dezoito anos se volta para a questão. Nós temos os documentos, os registros dos funcionários. Até indenização o Melentino recebeu.
Em 1992, Jean Pierre Júnior, sendo engenheiro civil, decide vir morar em Ubatuba, iniciando a construção de seu primeiro barco de pesca de camarão e dedicando-se exclusivamente a essa atividade. É casado; tem uma filha. Aqui nesta casa somos nós: eu e Patrícia. Eu decidi, após me aposentar pela Unitau, vir também para Ubatuba. Afinal o meu filho já estava morando aqui, além desta terra ter fascinado por tanto tempo a família Patural.
Atualmente não pensamos mais em mexer na questão do Ubatumirim. Porém, toda a documentação está em nosso poder. Há alguns anos estivemos na propriedade; deu pena ver tudo aquilo sem nenhum investimento, as pessoas que se apoderaram estão vivendo numa situação de miséria e não têm nenhuma perspectiva de vida. Vocês acreditam que eles continuam usando as duas casas que ainda foram construídas por nós, sem fazerem nada de melhorias? Antes de concluir a minha fala preciso dizer que até um estudo do potencial das águas das cachoeiras foi feito com muita dedicação pelo Jean Pierre; já tinha o projeto de energia gerada ali mesmo, tornando, certamente, uma fazenda-modelo.
Para finalizar: assim que os meus pais souberam do acorrido, me escreveram pedindo que retornasse à França com as crianças. Eu pensei bem, refleti sobre a situação da Europa e sobre os sonhos em que eu e meu marido tanto apostamos, me alegrei da nossa ousadia e coragem que se baseava num grande amor. Além do mais, eu estava empregada, ganhando razoavelmente bem e, as crianças estavam estudando e se dando bem no Brasil. É lógico que eu pensei: se voltasse para lá teria que recomeçar tudo de novo. E eu amo este país!”
Abaixo o reconhecimento do valor da família Patural, um manifesto dos vereadores em solidariedade à Família Patural (dona Silvia e seus filhos) por ocasião da tragédia ocorrida.
Em 27 de abril de 2012, aos 90 anos, dona Sílvia Polacco Patural nos deixou após ter vivido um belo exemplo de cidadania, marcando sua contribuição à aviação de Ubatuba.
Infelizmente o promissor agrônomo Jean Pierre Patural, que entendia de tudo um pouco morreu cedo, quando o bananal começava o ciclo de exportação e seu filho Jean Pierre acabara de nascer no território caiçara. A Serra do Mar engoliu, junto com o avião monomotor montado num quintal de Taubaté, um jovem idealista repleto de sonhos. O tempo deu um fim ao trator, ao primeiro barco motorizado, e àquele que ocupa a inscrição número um na nossa Colônia dos Pescadores.
A terra da família Patural que se transformava numa referência econômica antes do advento do turismo foi grilada. Hoje, após a morte de dona Silvia, seus filhos (Patrícia está na área da educação e Jean Pierre no setor pesqueiro) continuam como munícipes em Ubatuba. Assim se fizeram e continuam fazendo pelo Brasil e ao nosso município: através do trabalho e da evolução intelectual.
Referência Bibliográfica:
https://coisasdecaicara.blogspot.com/search?q=ubatumirim