A Maior Rebelião de Presos da História Mundial – Ilha Anchieta

A Maior Rebelião de Presos da História Mundial – Ilha Anchieta

A Ilha Anchieta está localizada apenas à 600 metros do continente, e é uma das principais atrações de Ubatuba, antiga Ilha dos Porcos, é conhecida pela beleza de suas praias selvagens, trilhas, locais de mergulho e também pelas ruínas de um antigo presídio estadual.

Ruínas do presídio da Ilha Anchieta
Ruínas do presídio da Ilha Anchieta

Cronologia de fatos na Ilha Anchieta
Habitada por indígenas, dentre os quais, Cunhambebe, desde que se tem conhecimento, a ilha Anchieta recebeu os primeiros colonizadores ingleses, franceses e holandeses aproximadamente no ano de 1600. Suspeita-se que por volta de 1803 começaram as primeiras construções do que mais tarde viria a ser o presídio da então ilha dos Porcos.
– Em 1800 um destacamento do exército português, se instalou para garantir a posse da terra.
– Em 1850 a ilha abrigou uma base da marinha inglesa, instalada na Praia do Leste, para combater o tráfico de escravos (os navios negreiros).

Ilha Anchieta – Ruínas do Presídio

– No início de 1870 a ilha já estava bastante povoada e tinha plantações de café, cana e até engenhos de pinga.
– Em 1885 a ilha passou a ser denominada Freguesia do Senhor Bom Jesus da Ilha dos Porcos.
– Em 1902 foram desapropriadas cerca de 412 famílias, para dar início a construção do projeto do arquiteto Ramos de Azevedo, da Colônia Correcional, destinada a recolher os “homens bêbados e os considerados vadios”.
– Em 1908 foi inaugurada a “Colônia Correcional do Porto de Palmas”.
– Em 1915, com a difícil e dispendiosa manutenção, a colônia foi desativada e os internos foram transferidos, para a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté e para o Instituto de Reeducação de Tremembé no Vale do Paraíba. Vários motivos ocasionaram a desativação da Colônia, entre eles, o alto custo para a manutenção do quadro de profissionais que lá trabalhavam e moravam, dificuldade de comunicação, transporte e baixa produtividade das atividades agrícolas realizadas pelos internos. gerando um problema de autogestão financeira.

Ilha Anchieta – Ruínas do Presídio

– Em 1926, o governo paulista, após expulsar os caiçaras que haviam ocupado a ilha, enviou 2.000 imigrantes colonos búlgaros e gagaúzos, fugitivos da revolução russa, que estavam abrigados em São Paulo, para a ilha, que tentaram nela sobreviver. Porém sem saber distinguir nas plantações nativas indígenas a colheita certa, morreram mais de cem pessoas, envenenadas (em sua grande maioria, crianças), após comerem mandioca brava, com isso, o governo mandou-os de volta à sua pátria.
– Na década de 1930, as edificações do presídio passaram por uma reforma, com o intuito de receber presos políticos da ditadura Getúlio Vargas, tendo ocorrido uma revolta em 1933, em que cerca de cem presos depredaram as instalações e tomaram o controle da guarda. Contudo, a situação foi controlada, não havendo mortos.
– A ilha foi chamada de “Ilha dos Porcos”, que era um nome de cunho pejorativo, que durou até 19/03/1934, quando da comemoração do quarto centenário de nascimento do Padre José de Anchieta. O então presidente Getúlio Vargas, através de seu interventor Armando Sales de Oliveira, altera o nome da ilha para Anchieta, e o presídio, “Instituto Correcional da Ilha Anchieta”.

Ruínas do Presídio na Ilha Anchieta

– Os prisioneiros políticos foram transferidos para a penitenciária da ilha, juntando-se a detentos comuns, presos de alta periculosidade, menores infratores, incluindo aqueles sem nenhum processo, muito menos condenação, os considerados “vadios”.
– Tem-se a informação que Graciliano Ramos, também ficou preso na Ilha Anchieta, antes de seguir para Ilha Grande (Instituto Penal Cândido Mendes), local onde escreveu uma de suas obras: “Memórias de um Cárcere”, um livro de memórias, publicado postumamente, em setembro de 1953, em quatro volumes. O autor não chegou a concluir a obra, faltando o capítulo final. Graciliano havia sido preso em 1936 por conta de seu envolvimento político com a chamada Intentona Comunista, de 1935. A acusação formal nunca chegou a ser feita e Graciliano foi preso sem provas e sem processo.
– Em 1945, chegou à ilha outro grupo de presos políticos, chamado de “Shindo Romei”, idealistas japoneses que durante a segunda guerra mundial, executavam seus compatriotas aqui mesmo no Brasil, por considerá-los amigos dos brasileiros e, por conseguinte, traidores do Japão. Nesta época a população carcerária da ilha chegou a 950 detentos.

Presídio na Ilha Anchieta - Arquivo público do Estado de São Paulo
Presídio na Ilha Anchieta – Arquivo público do Estado de São Paulo

– Em 1952 aconteceu a “Grande Fuga”. Sob a liderança de Pereira Lima, Faria Lima, Diabo Loiro e China, 107 presos fogem do presídio, abrindo caminho a balas pela praia num confronto que matou 8 soldados e 4 funcionários penitenciários. Foi a maior evasão de detentos da história carcerária mundial. Relatos de presos se entregando e, mesmo assim, sendo massacrados até a morte e de presos fiéis ao presídio lutando ao lado dos policiais são encontrados até hoje em obras que tratam do assunto.
– Em 1955 o presídio foi desativado definitivamente e apenas em 1969, por um projeto chamado FUMEST, suas ruínas são transformadas em atração turística pelo governador Abreu Sodré.
– Em 1984 o governador Franco Montoro cria o Parque Estadual da Ilha Anchieta, e a ilha se torna um grande polo turístico de Ubatuba.
– Em 1999, tivemos uma reforma, que recuperou instalações de infraestrutura turística.

Chegada a Ilha Anchieta
Chegada a Ilha Anchieta

A maior rebelião da história mundial
Basicamente em 1950, a estrutura da ilha era dividida em Presídio, Vila de Moradores (Vila Militar) e Vila do Quartel. As celas do presídio foram construídas de modo a formar um pátio retangular com 8 pavilhões e chegou a abrigar de 50 a 60 detentos, a maioria de alta periculosidade, e era nesse pátio que os presos ficavam soltos o dia todo. No final da tarde, início da noite, o carcereiro fazia a contagem e eles eram recolhidos para as celas.

No início da década de 1950, estavam confinados na ilha, cerca de 453 presos, e havia bastante animosidade entre grupos rivais, que se enfrentavam no pátio, e os cerca de 50 policiais tinham grande trabalho para conter estes conflitos, sendo o principal líder dos presos, o perigoso João Pereira Lima, o “Pernambuco”. Na época, no pátio, não tínhamos este gramado verde, era terra batida e tinha algumas árvores e coqueiros. Hoje, uma das curiosidades deste lugar é que o gramado está sempre aparado perfeitamente, e isso é feito pelas capivaras que fazem este “serviço de jardinagem”, se alimentando da grama.

A rotina do presídio mudou quando chegou para cumprir pena, Álvaro da Conceição Carvalho Farto, o famoso “Portuga”, um criminoso com conhecimentos de engenharia e muito inteligente. Aos poucos Portuga passou a influenciar os outros presos, dando funções específicas a cada um, organizando a vida interna, o que diminuiu os conflitos. Alguns presos pescavam, outros cuidavam da lavoura e outros do corte de árvores. Mas as intenções do Portuga não eram bem essas.

A rebelião foi notícia no mundo todo
A rebelião foi notícia no mundo todo

Tendo criado uma organização entre os presos, passou a arquitetar um plano para uma rebelião, que incluía a tomada do presídio e das armas que ficavam no quartel do Morro do Papagaio. Sob a influência do Portuga, os detentos passaram a ser mais cordiais e gentis, se aproximaram bastante dos policiais e até da população da ilha, num clima de confiança e paz que na verdade era o preparatório para o golpe.

Para arquitetar melhor o plano de fuga, Portuga pediu aos agentes penitenciários que o isolasse em uma cela, pois disse estar sofrendo ameaças de outros presos. E de lá aos poucos iam criando as estratégias que contava com a ajuda de outros líderes, tais como o “Pernambuco”, o “China Show”, o “Faria Lima”, o “Diabo Loiro” e do “Mão Francesa”, um detento que trabalhava na barbearia.

Notícia da rebelião na Ilha Anchieta

O meio de comunicação da ilha com o continente era uma sala onde ficava a estação de rádio telégrafo, operado por um sargento e na mesma sala, ficava a barbearia. Uma das ações dos líderes da rebelião foi infiltrar o preso conhecido como “Mão Francesa” para trabalhar nesta barbearia do quartel, e sua função era conhecer detalhes do local e a rotina dos militares. Uma semana antes da rebelião, este preso já havia tinha em mãos, o croqui do prédio e as informações do local onde ficavam guardadas as armas, facilitando as ações dos criminosos.

Ilha Anchieta anos 1950 – Foto do arquivo pessoal de Odaury Carneiro

A passagem dos japoneses pelo presídio da Ilha Anchieta
No final da segunda guerra (1945), parte da colônia japonesa que estava no Brasil não acreditava na derrota do Japão, acreditando que as notícias que circulavam sobre a rendição do imperador do Japão fossem falsas. Isso gerou conflito entre os que acreditavam na vitória e os que admitiam a derrota do país.

É nesse ambiente conturbado que entre 1946 e 1948, 172 japoneses chegam à ilha Anchieta. Haviam presos políticos de uma facção chamada “Shindo Renmei” (*) (Liga dos Caminhos dos Súditos). Eram ideólogos japoneses que executavam seus compatriotas, aqui no Brasil, por considerá-los amigos dos brasileiros e, por conseguinte, traidores do Japão. Apesar de haver alguns envolvidos em casos de assassinatos políticos, dentro do contexto do conflito entre os chamados “vitoristas” e “derrotistas”, a grande maioria dos presos japoneses que chegaram a Ilha Anchieta eram inocentes, e foram presos por serem imigrantes, perseguidos por serem filhos de um dos países do Eixo (Japão, Alemanha e Itália).

Na edição do dia 12 de julho de 1947 do jornal Diário da Noite, a legenda da foto diz que “os japoneses da Shindo Remmei são os mais ordeiros e uteis”. (Crédito da Imagem: Mario Jun Okuhara)

(*) Shindo Renmei, era uma sociedade secreta que entrou para a história da imigração japonesa e do período pós-guerra no Brasil. Recusando se a aceitar a noticia da rendição japonesa, a seita promoveu uma verdadeira caçada aos chamados “corações sujos”, acusados de traição à pátria por acreditar na verdade. De janeiro de 1946 a fevereiro de 1947, os líderes da Shindo Renmei percorreram o Estado de São Paulo realizando atentados que levaram à morte 23 imigrantes e deixaram cerca de 150 feridos. Durante o período em que a policia tentava descobrir quem estava por trás do grupo de extermínio, 31.000 japoneses foram presos, 381 denunciados e 80 condenados à expulsão do país.

Apesar do sofrimento, diversos relatos apontam que a passagem dos japoneses pela ilha foi marcada por melhorias no funcionamento do presídio. Por conta da boa disciplina e de seus conhecimentos, eles ganharam a confiança dos dirigentes da prisão e passaram a ter mais liberdade que os demais presos da ilha. Eles colaboravam de acordo com as habilidades que tinham. Lavrador era o que não faltava. Tinha alfaiate, dois engenheiros mecânicos e uma série de profissões para compensar carências da penitenciária. Sabe-se que os japoneses pescavam, faziam campeonato de sumô, realizavam a manutenção do gerador e conseguiram criar uma horta farta, diversificando a alimentação dos presos.

Tokuishi Hidaka – Um dos prisioneiros da Ilha Anchieta visitando as ruínas do presídio – Foto extraída da Revista Ribeira Ubatuba

A incrível história de Fusatoshi Yamauchi
Alguns relatos são impressionantes como o caso do prisioneiro Fusatoshi Yamauchi, que não cometeu crime algum, mas pediu para ser preso na ilha, quando seu pai, Kenjiro Yamauchi, também inocente, foi preso por ser redator da associação Shindo Renmei, operando o mimeógrafo usado para reproduzir textos do grupo. Fusatoshi pediu para ser levado para a prisão com o pai para cuidar dele, que já tinha idade um pouco avançada. O ato solidário, enche de orgulho, seus familiares que dizem: “Ele veio para cuidar do pai dele, a gente não vê isso hoje em dia”. Fusatoshi também teria se negado a pisar sobre a bandeira japonesa, método adotado pela polícia da época para detectar os ditos “estrangeiros nocivos à segurança nacional do Brasil”. Ele chegou a sofrer tortura na prisão, faziam aquele corredor da morte e mandavam os presos ficarem nus e batiam neles com cassetete.

A data 23 de setembro foi instituída no calendário de Ubatuba, como “Dia em homenagem aos imigrantes Japoneses presos na ilha Anchieta”.

20 de Junho de 1952
O dia escolhido para a ação foi 20 de junho de 1952, pela manhã, quando 110 presos foram buscar a lenha que já havia sido cortada por outro grupo de 12 presos. Estes 110, foram acompanhados de apenas dois soldados e dois guardas civis do presídio. Naquele dia, por volta das 12 horas, chegaria a embarcação, chamada “Ubatubinha”, trazendo mantimentos, como sempre acontecia uma vez por mês. Os presos planejavam tomá-la de assalto para fugir da ilha. Um dos soldados que acompanhava os presos foi morto, outro dominado e amarrado em uma árvore, assim como os dois guardas civis.

Ilha Anchieta – Ruínas do Presídio

João Pereira Lima, assumiu o comando da rebelião, e os detentos retornaram ao presídio, e no início do ataque ao quartel, com um tiro de fuzil, matou o “armeiro” (soldado Otávio dos Santos), e depois iniciou-se um confronto com os demais soldados. Os detentos invadiram a reserva de armas e se apoderaram de fuzis, mosquetões, metralhadoras, revólveres e farta munição.

Invadiram todas as dependências do presídio, arrombando as portas dos pavilhões e das celas, libertando todos os detentos e atacaram as residências do diretor e do tenente da Guarda Militar. A vitória dos presos foi completa, estouraram o cofre forte do presídio, executaram alguns soldados e agentes penitenciários e em liberdade passaram a dar as ordens na ilha. Em meio a toda esta desordem, uma voz se fez ouvir; “Se eu souber que alguma mulher ou criança foi maltratada, o autor terá morte pelas minhas mãos…..nosso fim é a fuga”. Frase proferida por João Pereira Lima, o líder da rebelião.

Ruínas do Presídio - Ilha Anchieta - Arquivo público do Estado de São Paulo
Ruínas do Presídio – Ilha Anchieta – Arquivo público do Estado de São Paulo

Naquele dia, por volta das 12 horas, chegaria a embarcação, chamada “Ubatubinha”, trazendo mantimentos, como sempre acontecia uma vez por mês. Os presos planejavam tomá-la de assalto para fugir da ilha. Mas a ação não aconteceu como o planejado, pois os criminosos, embriagados, circulavam armados pela ilha, incendiaram alguns lugares e a tripulação da embarcação percebeu que havia algo errado, decidindo não atracar na ilha. Alguns rebelados começaram a fugir nadando até o continente, outros em canoas e em barcos menores, o maior deles era uma lancha chamada “Carneiro da Fonte”, com capacidade para cinquenta pessoas.

Sede do Instituto Correcional da Ilha Anchieta – Foto: Reprodução – Parque Estadual da Ilha Anchieta

Esta lancha seguiu no sentido da Praia do Ubatumirim, com cerca de 90 detentos e destino final Paraty, dizem que para aliviar a carga, alguns foragidos mais pesados foram jogados ao mar, e devido a imperícia do “piloto” a lancha chegou em alta velocidade a praia, encalhando e causando a morte de alguns. Muitos foragidos conseguiram chegar em terra nadando e se embrenharam na mata. Um forte aparato foi preparado para recapturar os fugitivos, envolvendo a Marinha, Exército e Aeronáutica, além das forças públicas de São Paulo e Rio de Janeiro, em uma ação que durou vários dias. A maioria dos fugitivos foi recapturada na Serra do Mar, nas regiões de Caraguatatuba, Ubatuba e Paraty. Os que ficaram na ilha, renderam-se e a situação foi controlada pelos policiais.

Ilha Anchieta – Ruínas do Presídio

De um total de 129 fugitivos, 15 foram mortos nos conflitos com a polícia no continente na Serra do Mar,  porém seis nunca foram recapturados. A rebelião deixou ao todo 28 mortos, sendo 18 presos, 8 policiais e 2 funcionários civis. E o grande líder, Portuga, que tinha problemas cardíacos, foi encontrado morto na ilha. De 1952 a 1955, a ilha sediou um fórum, com juiz, promotor e 20 advogados, com a finalidade de julgar os presos capturados. Após a rebelião, a ilha continuou a ser presídio por mais um ano, quando em agosto de 1953, passou a ser denominada Colônia Agrícola da Ilha Anchieta.

Livro que conta detalhes da rebelião

A precariedade que já existia antes da rebelião se agravou. Ia desde a falta de gêneros alimentícios para o abastecimento das refeições dos presos, até as instalações inadequadas e falta de funcionários como médico, psiquiatra e professor. O Governo ainda tentou manter as atividades, mas não foram cumpridas as promessas de manutenção do estabelecimento e de remuneração aos internos da Colônia Agrícola. Em 1955 foi desativada definitivamente o núcleo na Ilha, ficando o conjunto carcerário praticamente abandonado. Os presos transferidos para a Casa de Custódia de Taubaté, um presídio de segurança máxima.

Esta foi uma rebelião histórica, notícia em todo mundo e quem visita o presídio tem acesso as informações sobre a construção do prédio, os presos que lá estiveram, o plano de fuga e a rebelião.

Fontes das informações:
Livro Ilha Anchieta Rebelião, Fatos e lendas – Tenente Samuel Messias de Oliveira

Parte de texto extraída da Revista “Ribeira Ubatuba”, matéria escrita por Renata Mondini Takahashi
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rebeli%C3%A3o_da_Ilha_Anchieta